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Diz-me o que comes e dir-te-ei quem és!

A alimentação é uma função básica essencial há vida dos seres vivos. Os bebés, quando nascem, alimentam-se através de um outro ser adulto. Logo, o alimento é sempre mediado por uma relação que, se não logo, ao longo da repetição do padrão de um adulto cuidador, vai estabelecendo uma relação afectiva

Teresa Heitor Ferreira
Psicóloga, psicanalista e membro fundador da AP
teresaheitorferreira@gmail.com

A forma como a figura que cuida vai interagindo durante o tempo que alimenta, a capacidade que esta figura tem de compreender, num período de tempo curto, a fome que o bebé tem, ou o facto de já estar saciado e querer parar ou de querer arrotar, porque se sente desconfortável ao ter engolido algum ar, parece ficar sintetizado, dentro de nós, como sensações. Sensação de sermos entendidos naquilo de que necessitamos, sensação de conforto, sensação de Plenitude. Parece-me que tudo isto junto dá-nos a experiência de sermos amados. É baseado nesta primeira sensação de amor que iremos construir todo o nosso crescimento.

Mais tarde, mas ainda enquanto crianças, fica-nos cá dentro, numa espécie de arquivo de afectos, uma mãe que é dona de casa e que cozinha todas as refeições com esmero, ou o sabor especial da canja da avó materna, ou a comida à la carte no dia em que estávamos de cama com gripe, o cheiro do pão cozido a lenha no forno da vizinha da avó, os figos apanhados da árvore logo ao pequeno almoço na quinta dos avós paternos, mais um chocolatinho da avó, desadequado em termos alimentares, mas carregado de afecto, etc.

Depois vamos crescendo e arquivando as sensações que vamos tendo nas experiências com os alimentos mediados por relações de afecto/desafecto.

E já em adultos, o que fazemos com o que vivemos?

Uns vivem para comer. A experimentação de carência afectiva precoce pode fazer-nos procurar na comida uma saciedade “enganosa”. Há como que um descrédito na relação humana. Ao enchermo-nos de comida preenchemos a sensação de vazio no campo dos afectos. É uma ilusão momentânea que nos leva a uma incessante perseguição do alimento. Outros comem para viver com o desejo de que houvesse umas pastilhas para se alimentarem e assim abdicarem do ritual (para eles mecânico) dos alimentos. Também aqui uma má experiência de nutrição afectiva precoce pode levar a que estas pessoas tenham um sentimento de desistência na credibilidade da relação humana e uma consequente desistência de se alimentarem, de se nutrirem, de se cuidar. Quase como se houvesse uma premissa que ditasse a regra: Não fui visto, cuidado, amado qualitativamente, não tenho valor suficiente, não sou merecedor de prazer de auto-cuidado e de partilhar isso com os outros de quem gosto.

Também o facto de extremarmos o consumo de doces faz-me pensar que grande parte das pessoas que viveram experiências de carência afectiva procurem compensar com os açúcares que funcionam como uma guloseima para o cérebro e nos provoca uma sensação de bem-estar psico-afectivo.

Outros há que são incapazes de comer doces e que, pelo contrário se concentram nos sabores amargos. Mais uma vez faz-me pensar que poderá haver uma experiência, em tenra idade, responsável pela interiorização da sensação de não serem merecedores de experiências agradáveis de prazer, é como se se autopunissem com um sabor forte e desagradável.

Quantas cuidadoras do lar conhecemos que cozinham todos os dias para a família, nutrindo-os, mas que não têm prazer em comer ou que ficam com o ovo estrelado que rebentou, como se a função destas pessoas fosse a de nutrir, a de dar afecto, mas não se sentindo suficientemente valorizadas e merecedoras para o receber.

Um crescimento saudável, no qual houve uma confiança básica mediada pela interiorização de ser amado, reflecte-se nas relações adultas fluídas, prazenteiras e afectivas, nas quais sentimos prazer numa boa mesa na qual alimentamos os outros, mas também quando nos alimentam. Alimentamo-nos em completude neste prazer de dar e receber nutrientes.